Os culpados pela morte de Cristo e o que a história sabe
sobre eles
Para a maioria dos cristãos, a
crucificação é o episódio mais importante da vida de Jesus. Conforme diz a
Bíblia, foi ela que trouxe a todos os seres humanos o perdão pelos seus
pecados. Também mostrou que existe um tipo de vida além desta aqui na Terra – o
que ficou provado quando, segundo os Evangelhos, Jesus ressuscitou dois dias
depois.
Para os historiadores, a
crucificação também é o episódio mais importante: é o único ponto da história de
Jesus que podemos dar como certo. Mesmo que os Evangelhos não existissem,
saberíamos dela por dois autores que não eram cristãos: o historiador judeu
Flávio Josefo e o romano Cornélio Tácito. Ambos dizem que Jesus existiu, teve
seguidores e foi crucificado por sentença de Pôncio Pilatos, o procurador
romano da região. Josefo acrescenta que ele havia sido acusado “pelos homens
mais influentes entre nós”, ou seja, pela elite judaica. Mas as informações que
eles trazem param por aí.
Segundo os Evangelhos, na Jerusalém
do século 1, Jesus de Nazaré é acusado de blasfêmia por se declarar Filho de
Deus. Os líderes judeus o enviam ao procurador romano Pôncio Pilatos, com a
recomendação de que fosse executado. Pilatos não vê por que matar um homem que
parece inocente. Oferece um criminoso, Barrabás, para ser crucificado em seu
lugar, mas não adianta: implacável, o povo pede que soltem o bandido. Pilatos
sai de mãos limpas. E Jesus recebe a crucificação.
Essa morte, tão importante para
religiosos e historiadores, não foi um acidente. Alguém matou Jesus, e faz
sentido querer saber quem foi. É aí que o problema começa. Josefo e Tácito
escreveram suas obras décadas depois dessa morte e não viram o episódio. A
mesma coisa ocorre com os discípulos de Jesus. “Os cristãos não acompanharam o
julgamento. Eles já tinham fugido quando seu messias foi capturado”, diz o
historiador Gabriele Cornelli, da Universidade Metodista de São Paulo. Nada foi
registrado pela elite sacerdotal ou pelo poder romano – Jesus era
insignificante para eles.
De onde saíram então os relatos
presentes nos Evangelhos? Segundo alguns pesquisadores, das profecias judaicas
e da tentativa dos cristãos de confirmar Jesus como o messias. “Não vejo razão
alguma para aceitar o que os Evangelhos falam sobre esses julgamentos como
verdade histórica”, afirmou à Super o historiador John Dominic Crossan, da
Universidade DePaul, em Boston, Estados Unidos, um dos mais respeitados
estudiosos do assunto. Para Crossan, tudo não passa de reciclagem: textos do
Velho Testamento, escritos séculos antes da crucificação, teriam sido
mastigados pelos evangelistas para dar uma aura de nobreza à morte de Jesus. Um
deles seria o verso do Salmo 2 que diz: “Insurgem-se os reis da Terra, e os
príncipes conspiram unidos contra o Senhor e seu messias”. Essas palavras
teriam inspirado os evangelistas a escrever que seu mestre só foi morto depois
de ter passado por julgamentos com as maiores autoridades disponíveis em
Jerusalém. Tal privilégio seria improvável no julgamento de um pregador camponês
desconhecido na cidade.
Mas, afinal, quem o matou? Acompanhe
a seguir o que sabem os historiadores, a partir dos quatro principais
suspeitos: os sacerdotes judeus, os romanos, os judeus e o próprio Jesus.
A elite
judaica
Tanto pelo relato de Josefo quanto
pelos Evangelhos, sabemos que Jesus foi levado ao imperador por ordem das
autoridades judaicas. Mas por que eles se preocupavam tanto com um homem
desarmado e pacifista? O que ele fez para ser morto com uma brutalidade no
mínimo próxima da que aparece no filme de Mel Gibson?
O problema é que a atitude de Jesus
em seus primeiros dias na cidade não foi exatamente pacífica. O episódio – que,
para a maioria dos historiadores, pode mesmo ter acontecido – está nos
Evangelhos: numa visita ao Templo de Jerusalém, o coração religioso da Judéia,
Jesus expulsa furiosamente os vendedores de animais e comerciantes instalados
nos arredores. “Não façam da casa de meu Pai um mercado!”, bradava.
Não foi um simples rapa nos camelôs.
Os comerciantes faziam parte da estrutura de arrecadação do Templo. Seus
animais eram vendidos para sacrifícios a preços inflacionados: os sacerdotes só
aceitavam pombos e bodes “puros”, justamente os comercializados lá mesmo. E os
cambistas trocavam as várias moedas que os visitantes traziam pela única aceita
pelo Templo, o shekel. Esse dinheiro, junto com os impostos anuais que os
sacerdotes cobravam de todo judeu adulto, faziam do Templo mais do que uma
igreja. Na prática, ele era o Banco Central da Judéia. Chegava a empregar 18
mil homens em seu processo interminável de reconstrução e guardava fortunas.
Era nesse vespeiro que Jesus estava
mexendo. Para quem, como ele, pregava uma sociedade igualitária, baseada na
ajuda mútua e na distribuição de bens, a lambança orçamentária do Templo simbolizava
tudo o que o nazareno sempre combateu. Sua atitude não podia ser mais coerente.
E planejada: Jerusalém festejava a Páscoa, o aniversário da fuga do Egito
liderada por Moisés 1 400 anos antes. Nessas comemorações, o Templo recebia
entre 200 mil e 300 mil visitantes de toda a Judéia. “Era a época mais propícia
para levantes”, diz o historiador André Chevitarese, da Universidade Federal do
Rio de Janeiro (UFRJ). Não tinha como a atitude de Jesus não chamar a atenção
dos responsáveis pelo Templo. Eles o prendem, o acusam de ter dito que
destruiria o Templo – falsamente, segundo os Evangelhos – e o condenam à morte
com a desculpa de que o nazareno insistia em se afirmar como messias durante o
interrogatório. Executado, o agitador seria mais um a servir de exemplo de que
não se deve mexer com essa elite. “Mas o direito de aplicar a pena de morte
tornara-se exclusividade dos romanos”, diz a historiadora Norma Mendes, da
UFRJ. Diante dessa limitação, os chefes religiosos tinham só uma saída:
entregar Jesus ao poder romano, mas com a recomendação que já conhecemos.
Os romanos
Ao aceitar a determinação para
executar Jesus, os romanos só estavam fazendo aquilo que sabiam melhor. Matar?
Não, manter a estabilidade do Império. “Como as legiões não podiam dar conta de
duas ou três grandes rebeliões ao mesmo tempo, Roma governava em conluio com as
elites locais”, diz André Chevitarese. Tanto os sacerdotes quanto Herodes
Antipas, empossado pelo Império para governar a periferia da Judéia, podiam
coletar impostos para si, desde que mantivessem o povo satisfeito com os
romanos e dessem ao César parte da arrecadação.
Então Pilatos não teria por que
pensar duas vezes antes de executar um desconhecido a pedido dos judeus. O fato
de o acusado ser ou não inocente não teria importância. Seu dever era evitar
atritos com os líderes judaicos, garantindo que nada atrapalhasse o fluxo de
impostos para a capital.
Se driblar problemas com a elite era
a chave da dominação, eliminar qualquer ameaça de revolta popular era a
essência. Nesse regime, agitadores como Jesus não duravam muito. Os romanos
tinham ali um líder que, de acordo com os sacerdotes, se dizia maior que Moisés
e se anunciava como Rei dos Judeus. “Era um discurso explosivo. Não podia ser
visto apenas no sentido religioso, a que eles não davam a mínima, mas também no
político”, diz André.
Por que, então, o procurador romano
aparece na Bíblia preocupado em defender a inocência do acusado? “O que está em
jogo ali é a absolvição de Pilatos”, afirma o historiador Edgar Leite, da Universidade
Estadual do Rio de Janeiro (UERJ).
As primeiras “biografias oficiais”
de Jesus foram escritas bem depois de sua morte, e por autores que nunca viram
o nazareno (veja quadro na página 45). Alguns historiadores acreditam que um
dos documentos que podem ter inspirado o Novo Testamento – conhecido como o
Evangelho de Pedro –, foi escrito na década de 40, dez anos depois da
crucificação. Era outro cenário, que influenciaria para sempre a imagem de
Pilatos nos textos canônicos.
No ano 39, Calígula assume o trono
em Roma. Insano e vaidoso, exigiu que o governador romano da Síria, Petrônio,
instalasse uma estátua dele em pleno Templo de Jerusalém. Para evitar a
profanação, milhares de judeus ameaçaram barrar as tropas romanas com seus
próprios corpos. Petrônio então sucumbiu: disse que arriscaria sua vida, mas
não cumpriria a ordem. Virou um santo vivo para os judeus. Nessa breve
lua-de-mel romano-judaica seria escrito o Evangelho de Pedro. “Nesse livro,
Pilatos é igual a Petrônio. Ele parece inocente e até a favor de Jesus”, afirma
Crossan.
Há ainda outra razão: as fronteiras
do Império, àquela altura, se estendiam por quase todo o mundo conhecido até
então, da Grã-Bretanha ao Oriente Médio. Todo tipo de gente estava sob o poder
romano. O afago em Pilatos seria uma espécie de propaganda cristã que tornava a
seita palatável ao mundo romanizado. Responsabilizar um romano pela morte de
Cristo não ajudaria nada nesse objetivo.
O povo judeu
O Pilatos que está na Bíblia propõe
que os judeus escolham entre soltar Cristo ou um bandido, Barrabás. A multidão
escolhe pelo fora-da-lei. Diante disso, qualquer leitor é levado a concluir que
não foram nem Roma nem as elites judaicas as responsáveis pela morte de Jesus,
mas sim “o povo judeu”.
O episódio é tido como um dos menos
verossímeis do Novo Testamento. “Não existe nenhum outro caso conhecido em que
um procurador romano fosse ouvir o que a população achava. Ainda mais se esse
povo nem romano era. Aquilo tudo parece ter sido criado contra os judeus”, diz
o historiador Pedro Paulo Funari, da Unicamp. Mas, se os cristãos eram judeus,
por que agir contra o próprio povo?
A história está no mais antigo dos
Evangelhos canônicos, o de Marcos, escrito por volta de 70 d.C., quando os
judeus estavam no fim de uma guerra contra os romanos. Um grupo violento tomava
as rédeas pelo lado judeu: os zelotes, que tinham o apoio da maior parte da
população. Para os historiadores, é desse cenário posterior que sairia o
“zelote” Barrabás – um homicida cheio de popularidade, preso em uma rebelião
contra Roma. Ao romantizar a escolha do povo pelo rebelde, Marcos simbolizaria
a preferência dos judeus pela luta armada em vez da salvação pacífica, figurada
em Jesus.
Segundo o Evangelho de Mateus, ao
escolher Barrabás, a multidão grita: “Que o Seu sangue caia sobre nós e sobre
os nossos filhos!” Era a tentativa de dar um ar profético à morte. Em 70,
quando acaba a guerra com os romanos, a elite judaica havia deixado de existir,
o Templo está destruído e mais de 1 milhão de judeus, mortos. Para os cristãos,
que não se engajaram na guerra, era como se Deus tivesse penalizado os judeus
pela morte de Jesus.
Jesus Cristo
Não podemos descartar um quarto
suspeito para a morte de Jesus: o próprio. A possibilidade de que ele acabasse
morto após mostrar o que pensava em pleno Templo de Jerusalém era real. Além do
mais, o homem tido como seu mestre, João Batista (veja o quadro ao lado), já
tinha sido executado na Galiléia, por ordem de Herodes. Então fica a pergunta:
Jesus esperava sobreviver às autoridades ainda mais poderosas da capital? Ou
ele de fato queria virar um mártir?
“Jesus sabia que suas atitudes eram
perigosas. Não era preciso um dom profético para saber que ele poderia ser
martirizado, o que não significa que ele planejou ou quis isso”, afirma
Crossan. Nos Evangelhos, Cristo tem esse dom, claro, mas os próprios textos
canônicos discordam quanto à sua reação diante da morte iminente. Em Marcos,
ele é um messias indeciso, que se atira no chão pedindo “Pai, afasta de mim
esse cálice [o sofrimento]” enquanto espera pelos soldados que, sabia ele,
Judas traria para capturá-lo. Mas em João ele está por cima: acalma seus
discípulos e aguarda a prisão com uma serenidade mais divina que humana. A
história não tem como desvendar o que se passava na cabeça de Jesus quando ele
resolveu desafiar os poderes de seu tempo. Só uma coisa não dá para discutir:
deu certo.
Escritores fantasmas
Os autores e a inspiração dos Evangelhos
Marcos, Mateus, Lucas e João nunca
escreveram um Evangelho. As obras que levam esses nomes foram escritas por
autores desconhecidos, quando esses personagens já estavam mortos. “O objetivo
desses textos era servir de modelo para que os primeiros cristãos soubessem como
agir quando eles próprios fossem interrogados por sacerdotes ou por romanos”,
diz John Dominic Crossan, da Universidade DePaul, nos Estados Unidos. Entre as
centenas de textos escritos pelos cristãos da época, a maioria desaparecida
hoje, esses foram os únicos a serem aceitos pela Igreja oficial. Os estudiosos
concordam que Marcos é o mais antigo – feito em torno de 70. Os autores de
Mateus e Lucas, compostos entre 80 e 90, fizeram seus Evangelhos com os textos
de Marcos na cabeceira: o primeiro é idêntico a ele em 90%; o segundo, em 50%.
João, segundo mostrou o estilo da escrita, teria sido redigido em torno de 125
e é considerado totalmente independente de Marcos para alguns historiadores e
parcialmente para outros. Seja como for, sua narrativa apresenta um Jesus mais
divino, que traduz teologicamente todos os seus atos, como dizer “eu sou o pão
da vida” para ilustrar o milagre da multiplicação dos pães. Além desses,
existem os chamados Evangelhos apócrifos (da palavra grega para “escondidos”),
que não entraram no Novo Testamento: há o Evangelho de Tomé, o de Felipe, o de
Barnabé, o “secreto de Marcos”, entre outros. Os mais esotéricos chegam a
mostrar o menino Jesus como um “Superboy”, um garoto aprendendo a lidar com
seus superpoderes. Mas há apócrifos respeitados, como o Evangelho de Pedro, que
é bem parecido com os oficiais. Para a maior parte dos historiadores, ele foi
escrito no século 2. Mas para outros ele pode vir da década de 40 e ter sido
uma das bases para o Evangelho de Marcos, servindo de modelo também para os
outros três.
Celeiro de salvadores
Não faltavam candidatos a messias na época de Cristo
Poucas pessoas conhecem essa parte
da história, mas no ano 63, quando a crucificação já havia feito 30 anos, as
autoridades judaicas prenderam novamente Jesus, acusado de causar desordem em
uma festa da região. Tentaram silenciá-lo com açoitamentos e, preocupados que
pudessem considerá-lo o profeta de Deus, enviaram-no ao governador romano, que
lhe aplicou um açoitamento ainda pior. Não era uma reencenação da Paixão. Esse
Jesus, também conhecido como “o filho de Ananias”, teve um fim mais tranqüilo:
por não ter seguidores, o governador o considerou um lunático e o libertou. Mas
é um bom exemplo do que as lideranças judaicas e romanas faziam com quem
causava desordem em festas e corria mesmo um leve risco de ser tido como o
messias. Cristo não foi o único. Sua Palestina judaica, ocupada por Roma desde
63 a.C. era uma terra fértil para rebeldes e messias. “Quando menino, ele
provavelmente ouviu histórias sobre Judas Galileu, crucificado por encabeçar
uma revolta contra o pagamento de impostos”, diz o historiador Gabriele
Cornelli, da Universidade Metodista de São Paulo. Não era para menos: os
camponeses formavam 90% da população e eram semi-escravos. Do que produzissem,
60% virava tributo para sustentar as elites romana e judaica. Eventuais faltas
de pagamento fizeram com que cidades fossem incendiadas e seus habitantes
crucificados ou vendidos como escravos. Tanta falta de perspectiva distanciava
o povo dos sacerdotes. Abria-se espaço para as seitas chamadas apocalípticas,
que apostavam que Deus viria pessoalmente acertar as contas. João Batista, o
mais conhecido desses arautos, tinha provavelmente o próprio Jesus entre seus
admiradores. Acabou morto pelo governante Herodes Antipas, fantoche do poder
romano. Outro homem, conhecido só como Egípcio, juntou uma horda para marchar
desarmada sobre Jerusalém, convencendo seus homens de que Deus os faria vencer.
Foram massacrados. Mais eficientes eram os sicários, salteadores que
esfaqueavam romanos e colaboradores do regime. O auge dessas rebeliões armadas
foi entre 66 e 70, com a primeira guerra entre judeus e romanos, mas elas
continuaram mesmo depois. O líder, na época aclamado como messias, se chamava
Bar Kokhba, mas esse “cristo” (“messias”, em grego) também fracassou. Os
judeus, banidos, se espalharam pelo mundo ocidental. E o cristianismo também.
O castigo
A condenação de um povo pela crucificação de Jesus
Os Evangelhos, historicamente
precisos ou não, funcionaram. Foram uma revolução em seu tempo: traziam um Deus
todo-poderoso e a promessa de um mundo feliz depois da vida, além de instruções
claras de como se chegar lá. Por algum motivo, os cultos pagãos romanos não
ofereciam mais respostas satisfatórias para a população. Alguns pesquisadores
falam que eles haviam perdido seu mistério, a ponto de se tornar quase um folclore.
Outros, que haviam se misturado demais ao governo, associando a autoridade
divina à do imperador. Qualquer que seja a resposta, o cristianismo, já
separado do judaísmo, surgia como uma nova opção de religião que se adaptava
facilmente aos povos de todo o Império.
As mensagens religiosas cristãs não
se espalharam sozinhas. Junto com elas foram todas as denúncias contra o
judaísmo presentes nas descrições da morte de Cristo. Não dá para dizer que os
Evangelhos são anti-semitas – afinal, foram escritos por judeus – mas, quando
lidos no resto do Império, passavam uma imagem que poderia facilmente incitar o
ódio. “As narrativas da Paixão são a matriz do antijudaísmo cristão e, por fim,
do anti-semitismo europeu”, diz Crossan. Até que cristãos e judeus pudessem
fazer as pazes, seriam quase 2 mil anos de uma história bem violenta.
Tradição
O anti-semitismo é muito mais antigo
que o cristianismo. Quando os gregos começaram a se espalhar pelo Mediterrâneo,
mais de 300 anos antes do nascimento de Jesus, surgiu uma bronca contra aquele
povo que não comia salsichas, não casava com estrangeiros e se recusava a
adorar os deuses pagãos. Parecia ser o único povo a se opor a esses costumes
tão simples da cultura helenística. Para piorar, os judeus acreditavam em um só
deus, que parecia muito estranho: afogava a humanidade em um dilúvio e ameaçava
destruir seu próprio povo. “Eles chegaram à conclusão de que aquela gente
decididamente não era honesta”, afirma o francês Gerald Messadié, autor do
livro História Geral do Anti-Semitismo.
Os pagãos ficavam também
estarrecidos em ver como as várias correntes do judaísmo discordavam em tudo –
da luta armada até a pureza dos alimentos – e, às vezes, partiam para o
quebra-pau. Em 66 d.C, por exemplo, os romanos cercaram Jerusalém. Os judeus lá
dentro, divididos em três facções que não se entendiam de jeito nenhum,
começaram a lutar entre eles. Segundo o relato de Josefo, formaram-se pilhas de
cadáveres de todas as idades estripados, empalados ou degolados. Restava pouco
quando os exércitos do César entraram na cidade.
Não é de se estranhar que os romanos
olhassem para os judeus com uma certa desconfiança, o que levou a algumas ações
isoladas contra comunidades no Mediterrâneo. Os cristãos também sofriam nesses
ataques. Para Roma, a única diferença entre eles e os judeus era fiscal: os
cristãos pagavam menos impostos por não terem participado da guerra entre 66 e
70. No entanto, os seguidores de Jesus aos poucos se distanciam da cultura
judaica, abandonam as restrições alimentares e a prática da circuncisão e
começam a ganhar adeptos entre os pagãos.
No século 4, quando o imperador
Constantino faz do cristianismo a religião oficial do Império, as histórias dos
Evangelhos se somaram ao preconceito que já existia contra os judeus. Não fazia
mais sentido culpar os romanos, agora cristianizados, pela morte de Jesus.
Santo Agostinho, o mais influente teólogo da época, determinou a sentença aos
judeus: eles deveriam sobreviver, de forma marginal e inferior, como
testemunhas da verdade do cristianismo. Ou seja, uma espécie de relíquia da
época de Jesus.
“Os judeus se tornaram um problema.
Uma minoria numerosa, bem organizada, comparativamente rica, bem educada e
religiosa, que rejeitava o cristianismo por obstinação”, afirma Paul Johnson no
livro História dos Judeus. Sob o domínio cristão, os semitas perderam a maioria
dos direitos e privilégios. O resultado da perseguição se estendeu pelo próximo
milênio: se na época de Jesus eles chegavam a 8 milhões, por volta do século
10, apesar de estarem espalhados por toda a Europa, não passavam de 1,5 milhão
de pessoas. Grande parte estava em território árabe, mais tolerante em relação
aos judeus (veja texto na página 50).
Eles estavam banidos da agricultura.
A Igreja não lhes concedia terras – porque eles não pagariam dízimo – nem
podiam ter escravos, sem os quais a atividade se tornava inviável. Além disso,
as ondas de violência que atingiam suas comunidades obrigava a se manterem
sempre prontos para partir. Mesmo em tempos de relativa paz, a situação não era
confortável. Em Béziers, na França, costumava-se jogar pedras nos judeus no dia
de Ramos para “vingar o Senhor”. Em Toulouse, um deles recebia na Páscoa um
soco com uma manopla de ferro, como lembrança dos ultrajes a Cristo no
calvário.
As cenas da Paixão também eram
usadas para associar o judaísmo ao dinheiro. Lembrando o episódio de Judas,
dizia-se que os judeus, depois de terem trocado o messias por algumas moedas,
dispunham-se a comprar e vender tudo. Na época, a população judaica era quase
toda urbana, dependendo de profissões como o comércio e, principalmente, o
empréstimo de dinheiro. Ser credor de grande parte do povo só reforçava a raiva
contra os judeus, mas era o único ponto em que as regras católicas eram a favor
deles: os cristãos proibiam a cobrança de juros, sob o argumento de que se
estava com isso taxando o tempo, que pertencia a Deus. Já o judaísmo não tinha
nenhum problema quanto a isso.
Na verdade, essa relação com o
dinheiro salvava a pele dos judeus. Espalhados pela Europa, Ásia e norte da
África e unidos por fortes laços familiares e profissionais, eles criaram uma
rede de comércio que abrangia quase todo o mundo conhecido. Cabia a eles a
ligação entre o Ocidente e o Oriente – era o único povo que sabia entender a
língua e a cultura dos dois lados e podia, assim, traduzir obras e levar
informações e mercadorias de um para o outro. Muitos reis viam os judeus como
um sinônimo de riqueza e ofereciam incentivos para atraí-los. “Quanto mais
forte a autoridade, maior probabilidade tinham os judeus de estarem seguros”,
afirma Paul Johnson. Por outro lado, eles não raro eram tidos como propriedade
do Estado: uma espécie de caixa de reserva que poderia ser assaltada a qualquer
momento. Os maiores problemas, no entanto, vinham em momentos de entusiasmo
religioso. E eles não foram poucos.
Trevas
Em 1144, William, o filho de um
fazendeiro rico de Norwich, na Inglatera, desapareceu depois ser visto entrando
em uma casa judia. Foi encontrado dois dias depois, de cabeça raspada e com
inúmeras punhaladas. A mãe do menino e o padre local acusaram os judeus de ter
matado o menino durante uma reencenação da Paixão de Cristo. Logo a história se
espalhou e começaram a aparecer milagres ligados ao corpo do William. Foi o
início de uma onda de boatos e violências contra as comunidades judaicas.
Uma história da época dizia que os
judeus sofriam de hemorróidas desde que, diante de Pilatos, chamaram para si a
responsabilidade sobre a morte de Jesus. Os sábios hebreus, dizia a lenda,
teriam descoberto que a única cura para a doença era o “sangue de Cristo” – ou
seja, o batismo –, mas, segundo o mito, os judeus estavam levando a receita ao
pé da letra. Todo ano, um substituto de Jesus precisava ser morto para que o
sangue pudesse ser utilizado no pão da Páscoa judaica e trazer a cura. Naquele
ano, teria sido a vez de William, mas outros viriam. Nas décadas seguintes,
qualquer garoto que aparecesse morto era dado como vítima do assassinato
ritual. A história também se misturou a outras denúncias, que diziam que eles
roubavam hóstias para usar em rituais demoníacos. Em cada acusação, um massacre
nos judeus.
O bom senso definitivamente não era
o forte dessa época. O que movia corações e mentes era o fundamentalismo
cristão, marcado pela criação de ordens monásticas rigorosas, pela crença no
fim do mundo iminente e pela tentativa desesperada de redimir os pecados. A
melhor forma de atingir esse último objetivo era participar de cruzadas para
libertar Jerusalém, a terra santa. Ela estava nas mãos de muçulmanos que,
segundo boatos, maltratavam cristãos, com o auxílio de judeus. Os cruzados não
atacavam as comunidades de suas próprias vizinhanças – que sabiam ser gente
como eles próprios – mas, uma vez a caminho, logo se voltavam contra os semitas
de outras cidades.
É claro que, para tanta violência,
tinha que ter dinheiro no meio. Durante o século 13, 65% dos devedores dos
judeus eram aldeões e nobres rurais – justamente as pessoas que mais tinham
capacidade de conduzir uma onda de anti-semitismo. Ao mesmo tempo, os judeus
estavam em declínio e perdendo a proteção das autoridades. Grande parte de suas
funções econômicas estava sendo substituída por instituições católicas. Ou
seja, haviam se tornado desnecessários aos reis.
O principal problema era mesmo o
religioso. Desde 590, havia um novo argumento contra eles, elaborado pelo papa
Gregório, o Magno. Ele dizia que a questão não estava na multidão que havia
crucificado Cristo. O problema era que todos os judeus desde então sabiam da
verdade do cristianismo – sabiam que Jesus era o messias e havia feito milagres
– mas continuavam a rejeitá-lo. Era uma atitude tão estranha que, para a lógica
da época, não podia ser humana. Os judeus deveriam ser um tipo diferente de
gente, uma raça que, dizia o povo, tinha cauda e um cheiro particular que
desaparecia depois do batismo. Foi o primeiro caso de perseguição a um grupo
pela idéia de raça – o nascimento do racismo.
Essas idéias geravam violência de
acordo com o ânimo da época. “A ênfase nas narrativas da Paixão só surge em
épocas de incerteza e questionamento dos valores da Igreja. São manifestações
pessimistas, anticoletivistas e reacionárias”, diz o historiador Francisco
Carlos Teixeira da Silva, da UFRJ. Ele diz que, em épocas de euforia e defesa
dos valores comunitários (veja, por exemplo, o movimento hippie no final dos
anos 60), Cristo vira um modelo de vida a ser seguido, um exemplo de virtude.
Sua morte é quase um acidente. Já em tempos de incerteza ressurge uma das
novidades trazidas pelo cristianismo: o culto da dor e do sofrimento. “Ninguém
até então havia dito que a dor era importante para a salvação. Isso seria
considerado obsceno”, diz Crossan. Ao longo da história, representações de
Cristo que carregam na violência (como a do filme de Mel Gibson) são típicas de
momentos em que parece não haver outra saída além da dor e da destruição desse
mundo. “Nessas épocas, é comum buscar um bode expiatório para o sofrimento”,
diz Francisco.
Motivos não faltaram para incerteza:
entre 1348 e 1351 a peste se espalhou pela Europa, matou 25 milhões de pessoas
e trouxe nova culpa aos judeus. Eles eram acusados de espalhar a doença
envenenando poços – uma história que alguns deles confirmaram sob tortura.
Famílias judaicas inteiras foram mortas antes que a peste chegasse até elas.
Havia um outro motivo para a
incerteza dos fiéis: grupos saídos de dentro da própria Igreja propunham novas
doutrinas e questionavam os dogmas do Vaticano. A resposta foi uma pancadaria
promovida pela Igreja contra toda e qualquer coisa que cheirasse a heresia,
judaísmo incluído. No século 15, ele passou a ser considerado um “problema”,
que exigia uma “solução final”. “A guerra contra os judeus foi retirada das
mãos do povo e tornada negócio oficial da Igreja e do governo”, diz Paul
Johnson. O laboratório para esse tipo de ação foi a Espanha, onde uma lei
determinou que fosse expulso do país qualquer judeu que não aceitasse a
conversão imediata. Muitos se batizaram, mas o problema só aumentou.
Continuavam a praticar o judaísmo, só que agora em segredo e, para desespero
dos cristãos, com os mesmos direitos que qualquer outro cidadão. Foi um dos
motivos para que a Inquisição se voltasse contra eles e levasse milhares para
fogueira.
Muitos judeus fugiram para os países
próximos e, como uma onda, as ações contra eles se espalhavam pela Europa. Os
judeus que fugiam da Espanha, ao chegar às outras cidades, aumentavam a sua
comunidade a ponto de irritar os habitantes locais. Nessa época, tornou-se
popular a lenda do judeu errante, a história de um homem que batera em Cristo
durante a Via-Crúcis e fora condenado a vagar pelo mundo até a volta do
messias. Na época, judeus errantes de verdade eram o que não faltava. Eles
acabavam expulsos das cidades, atacados ou trancados em guetos, que se
espalharam por toda a Europa e persistiram até o século 19.
Trégua
A vida dos judeus ficou mais fácil a
partir do século 16. Em primeiro lugar, a descoberta de novos continentes deu a
eles um novo lugar para viver. Um exemplo foi o primeiro governador-geral do
Brasil, Tomé de Souza, que era de origem judaica. Além disso, o desenvolvimento
do capitalismo foi um terreno fértil para que colocassem em prática suas
habilidades financeiras. Os católicos também não eram mais a mesma potência e
disputavam espaço com os protestantes. Os judeus deixaram de ser a única força
européia contrária ao Vaticano, mas não deixaram de ser odiados: Martinho
Lutero, o principal personagem dessa reforma religiosa, frente à recusa dos
judeus em seguir sua fé, chamou-os de usurários e incitou seus seguidores a
esmagá-los. Alguns historiadores consideram Lutero o primeiro autor a delinear
o anti-semitismo moderno.
As antigas manifestações e mitos, no
entanto, persistiram. Um exemplo é uma obra escrita em 1833, pela freira Anne
Catherine Emmerich, A Paixão Dolorosa de Nosso Senhor Jesus Cristo, um retrato
detalhado e violento da morte de Cristo. “Ele traz ainda a imagem medieval dos
judeus, como um povo vil guiado por forças demoníacas”, diz Crossan. “É a
principal fonte da nova obra de Mel Gibson. Cerca de 80% do filme está nesse
livro”, afirma.
O auge da perseguição veio – você já
deve ter adivinhado – com Hitler, durante a década de 1930. A maior e mais
conhecida demonstração de anti-semitismo não teve base no cristianismo, apesar
de ter se aproveitado do ódio religioso aos judeus construído por milênios. Ela
se inspirava em outra fonte, mais antiga que o catolicismo: o Império Romano.
Além de ter se apropriado de vários símbolos pagãos, ele tinha o mesmo desejo
de construir um império em torno de sua gente e sua crença. Do catolicismo,
Hitler retirou apenas o método: com exceção dos campos de concentração, a maior
parte de suas medidas anti-semitas já havia sido praticada pelos católicos,
desde a obrigação de usar sinais de identificação na roupa (como determinado
por um concílio em 1215) até a construção de guetos e a tentativa de uma
“solução final”.
A trégua entre católicos e judeus
veio em 1965, após o Concílio Vaticano II, convocado pelo papa João XXIII para
renovar a Igreja. Lá foi publicado o documento Nostra Aetate (“Nossa época”, em
latim), segundo o qual, “apesar de as autoridades judaicas e seus seguidores
terem pedido a morte de Cristo, os acontecimentos da Paixão não podem ser
imputados indistintamente a todos os judeus de então nem aos judeus de hoje”.
Também foram retiradas as ofensas presentes nos materiais católicos, como a de
uma oração de Sexta-feira Santa que rezava pelos “pérfidos judeus”. A posição,
no entanto, não é aceita por algumas correntes católicas conservadoras, que se
opõem às mudanças desse concílio. Mel Gibson, por exemplo, se inclui nesse
grupo. “A aproximação entre judeus e cristãos é um processo lento. Não podemos
mudar milênios em alguns anos”, diz dom João Oneres Marchiori, presidente da
comissão para o ecumenismo e o diálogo inter-religioso da Conferência Nacional
dos Bispos do Brasil.
Conhecer a verdadeira causa da
crucificação já é um começo. Jesus não morreu por culpa de um povo – foi uma
reunião de fatores envolvendo a elite judaica, o poder romano, seguidores de
ambos e, possivelmente, o próprio Jesus. Saber o que está por trás dessa
história é uma questão para todos, ou ao menos para aqueles preocupados em
evitar que a violência se espalhe disfarçada de religião.
Árabes, amigos dos judeus?
O império que não condenou os hebreus
Quando olhamos a paz recente entre
judeus e católicos e as atuais batalhas entre isralenses e árabes, é difícil
imaginar que, há 1 500 anos, os papéis eram trocados. Enquanto cristãos usavam
todas as ferramentas contra os judeus, os territórios árabes eram um pouso
seguro para os seguidores de Moisés. Eles eram, como todo não-muçulmano,
cidadãos de segunda classe, mas a única conseqüência disso eram impostos mais
elevados. Apesar de a lei dar aos muçulmanos o direito de fazer o que bem
entendessem com os infiéis, a violência raramente era utilizada. Os judeus
ocupavam um leque de profissões muito maior que na Europa: tornaram-se
pastores, agricultores, vidraceiros, comerciantes e fabricantes de seda. Qual
era o motivo de tanta tolerância, se os muçulmanos também têm Jesus entre seus
profetas? Não estariam eles também propensos a acusar os judeus de deicídio?
Acontece que o Islã herdou a tradição cristã na versão de uma antiga heresia, a
docetista. Ela dizia que Cristo não teve um corpo material. Ele era apenas
espírito e, portanto, não tinha como morrer na cruz. O Corão chega a afirmar
que os judeus conspiraram contra Jesus, mas Deus foi mais esperto e conspirou
contra eles. Ao contrário dos primeiros cristãos, os muçulmanos não se sentiam
ameaçados pelas tribos judaicas que viviam à sua volta. Tampouco desejavam
aliar-se ao Império Romano, que já havia se fragmentado e não ocupava mais um
território tão grande. Os dois povos puderam, então, se concentrar em suas
semelhanças, que iam desde o idioma até o tipo de dieta a que estavam
acostumados. Existiram atos de violência, mas nada comparável com a rivalidade
existente hoje. Que, por sinal, tem motivos totalmente políticos, e não
religiosos.
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